lunes, 5 de julio de 2010
De Sabores, de Saberes e de Poderes
De Sabores, de Saberes e de Poderes
Carlos Walter Porto-Gonçalves
DO RIGOR NA CIÊNCIA
“Naquele Império, a Arte da Cartografia atingiu uma tal Perfeição que o Mapa duma só Província ocupava toda uma Cidade, e o Mapa do Império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmedidos não satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o Tamanho do Império e coincidia ponto por ponto com ele. Menos Apegadas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes entenderam que esse extenso Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos Desertos do Oeste subsistem despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos. Em todo País não resta outra relíquia das Disciplinas Geográficas.
Suárez Miranda: Viagens de Varões Prudentes, livro quarto, cap. XIV, 1658”.
Jorge Luis Borges
“Os filósofos têm se dedicado a buscar a raiz das coisas e não as coisas”.
Michel Foucault
Devemos nos habituar a afirmar, de uma vez por todas, que o conhecimento não se reduz ao conhecimento científico, como se quis modernamente fazer crer, com isso desqualificando outras falas e outros saberes simplesmente porque não eram científicos.
Hoje não só sabemos que pouco sabemos da Physis – fala-se que somente conhecemos 10% da matéria conhecida, que não é o mesmo que matéria cognoscível, como nos ensina o físico Marcelo Gleiser; que utilizamos uma parcela muito pequena do nosso cérebro; que há, para além do conhecimento científico, um vasto conhecimento acerca da natureza desenvolvido por populações que os criaram através de culturas tecidas numa relação íntima com-a-natureza e não contra-a-natureza, como a sociedade ocidental urbana moderna.
Enfim, o conhecimento científico é um modo de conhecimento e não O Conhecimento. E, mais, o conhecimento está inscrito na vida de cada um, pois não se vive sem conhecimento. Todo e qualquer ser vivo tem que estar aberto para o mundo, para o ambiente, de onde extrai o necessário para se alimentar. Tem que saber pelo cheiro, pelo olfato, pelo tato (pelo paladar), pela visão, pelo som. O ser humano não escapa desse extrato natural, animal que é. Também sabe pelo cheiro, pelo olfato, pelo paladar, pelo tato, pelo som, muito embora superdimensionemos o que sabemos por meio da visão .
Várias línguas ainda indicam que se sabe não só por meio da visão como nos indicam o mesmo radical para saber e sabor - sapere e sapore, do italiano, ou saveur e savoir, do francês . Sabemos que toda cultura se faz transformando o cru – a natureza – em cozido – a cultura (Lèvy-Strauss ), no saber criar o sabor. A culinária é a síntese desse entrecruzamento radical de toda sociedade (relação dos homens e mulheres entre si e com-a-sua-natureza, como gostava de escrever T. Adorno). E o sabor, sabemos, implica a indissociabilidade do cheiro e da visão, do tato e do paladar. É uma lógica material, como designou o físico e filósofo Gaston Bachelard, por contraste à lógica formal (lógica das formas) ou lógica ocularista dominante em nossa sociedade.
No meio científico essa lógica formal ficou consagrada pelo uso freqüente de gráficos com suas linhas e curvas que oferecem à nossa visão formas (éidos, do grego), gráficos acertadamente chamados cartesianos. Na geografia, a consagração dessa lógica ocularista, formal e matemática está naturalizada nos mapas. Já vimos que os mapas estão assentados em coordenadas cartesianas e que seus graus, segundos e minutos indicam que um tempo abstrato comanda a representação (e controle) do espaço. Essa abstração matemática a partir de horas que são iguais em qualquer lugar, não impede que o mapa apareça a cada de um de nós como sendo algo objetivo. É preciso muita imaginação para se achar que nosso bairro, nossa cidade, nosso país ou o planeta inteiro cabe num pedaço de papel de alguns poucos centímetros, o que não nos impede de dizer que eles estão ali, objetivamente. Diz-se, até, que o que não está no mapa não existe. O que, de certa forma, não deixa de estar correto, desde que se considere que o mapa não é o mundo no papel e, sim, a invenção de um mundo que visibiliza e invisibiliza o que tem significado para quem faz o mapa. Imagem e magia têm ligações mais fortes do que admitem nossa vã imaginação. Cada sociedade vive (e morre) dos mitos que cria.
Há, ainda, muitos saberes inscritos nos fazeres e não nos dizeres ou nos escritos. O fazer nosso de cada dia está impregnado de conhecimentos e o fato de alguém não saber falar sobre esse conhecimento não quer dizer que não saiba. Pode, simplesmente, não saber ... dizer, falar. Ou, simplesmente, não ser do seu fazer ... o dizer. Afinal, alguém pode dizer ‘nós vai’ e saber dizer para onde vai, enquanto outro pode dizer ‘nós vamos’ e não saber para onde vai. Quem já entrou numa floresta, num rio, num cerrado, ou na caatinga, ou no mar, seja com um caboclo, com um índio, com um camponês, ou com um pescador sabe que há um enorme acervo de conhecimentos produzidos por essas outras matrizes epistêmicas o que, até aqui, temos nos recusado a aceitar como tal, embora, não tenhamos deixado de nos apropriar desses saberes que estão subjacentes à maior parte da culinária e da medicina disponível para a humanidade. Uma simples contabilidade de quem se beneficia desse acervo de conhecimentos só no mundo da farmacologia nos daria conta da enorme injustiça que se fundamenta no preconceito. Sabemos o quanto o dizer que os outros não sabem serve de fundamento e justificativa para que alguns homens e mulheres se imponham sobre outros homens e mulheres. Admitir que os outros sabem é, assim, admitir que cada ser da espécie humana é portador dessa igualdade radical de todo ser vivo, dos homens e mulheres das mais diversas culturas. Aqui a diferença requer igualdade política.
Sabemos, ou deveríamos saber, o quanto de preconceito dorme em cada um de nós formados nessa tradição de 2.500 anos de pensamento ocidental. Afinal, o conhecimento, desde a crise da democracia ateniense, passou a ser, cada vez mais, um conhecimento feito por especialistas que, para conhecerem verdadeiramente, seja lá o que isso signifique, deveriam se dedicar exclusivamente à arte de pensar. Para isso deveriam se manter livres do trabalho manual forjando, assim, um verdadeiro abismo entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, entre os que fazem e os que pensam. Reafirme-se que esse abismo é cavado pelo preconceito contra os que trabalham, contra os que operam com as mãos. O conhecimento racional, isto é, o conhecimento lógico, científico e filosófico passa a ser desenvolvido num mundo à parte, como se fôra um mundo sobrelunar. Vê de longe .
Deste modo, a verdade descoberta nos gabinetes, catedrais, mesquitas, monastérios ou laboratórios, será levada aos que vivem no mundo sublunar. Assim, a verdade seria externa ao mundo vivido pelos homens e mulheres mundanos. Ainda hoje temos o Pastor, ou o Filósofo, ou o Político, ou o Cientista que, por estudarem, acreditam conhecer a Verdade e, por isso, estariam autorizados a levá-la, de fora, a quem não a conhece. A verdade não estaria entre os homens e mulheres no seu cotidiano, em meio às suas relações recíprocas e com a natureza, mas fora dessas relações mundanas. Os que trabalham com as mãos, aqueles que estão no mundo do trabalho, mundanos que são, não são vistos na sua humanidade plena, posto que seriam seres desprovidos da razão e, deste modo, são, simplesmente, mão ... (de obra).
Registre-se, ainda, que esse saber racional, desde a Grécia Clássica, era desenvolvido exclusivamente por homens e negado às mulheres, como se elas não fossem capazes de desenvolver um conhecimento racional. Eis a origem da crença, presente ainda hoje, que as mulheres são emotivas, passionais e não racionais. E, mais ainda, para os gregos, as mulheres estavam excluídas da vida pública que só era admitida para alguns homens. Assim, aquela atividade humana que os gregos consideravam a mais sublime - a Política – era negada às mulheres. Deste modo, as mulheres estavam impedidas de virem a público expressar a sua verdade. A verdade grega era a verdade da sua metade homem. Daí, até hoje, a expressão homem público ser uma expressão qualificada positivamente e mulher pública ser desqualificada posto que sinônimo de mulher mundana (prostituta).
Toda a análise das implicações éticas, políticas, sociais, econômicas e culturais do sistema técnico-científico indica-nos que o mundo que vivemos aponta para a necessidade de um diálogo com matrizes de racionalidade distintas, onde o conhecimento não seja reduzido ao conhecimento científico e a racionalidade reduzida à racionalidade científica.
O conhecimento técnico e perito, aquele que se apresentou como um conhecimento universal, generalizou suas práticas e, com isso, estendeu as conseqüências de seus atos para amplos segmentos sociais que não participaram das decisões de que sofrem os efeitos. E, como sabemos, não são efeitos quaisquer (uso da engenharia genética, da biotecnologia na comida nossa de cada dia; risco nuclear; ‘acidentes’ vindos do “mundo químico”; efeito estufa; o buraco da camada de ozônio; erosão genética; desequilíbrio hídrico; perda de solos ...). Assim, decisões tomadas com base numa legitimidade técnica e científica, legitimidade essa que, diga-se de passagem, é, hoje, posta em dúvida dentro da própria comunidade científica, contribuíram para produzir riqueza para alguns, pobreza para muitos e desequilíbrio ecológico para todos
Enfim, o conhecimento técnico-científico, por melhor que seja e, por mais que tenha que ser considerado como um modo de conhecimento válido, não é suficiente para que uma decisão eficaz possa ser tomada, sobretudo quando envolve sistemas complexos, como os que envolvem a relação do homem com a natureza, posto que sempre envolve sistemas de alto grau de incerteza, dinâmicas naturais, em si mesmas complexas (complexidade ordinária) e, ainda, sistemas morais, éticos, sociais, políticos e culturais, ou seja, sistemas de complexidade reflexiva.
É preciso que se leve em conta que a razão instrumental, aquela que se forja numa relação sujeito-objeto, não contempla a complexidade do mundo vivido, o mundo das relações intersubjetivas, da razão comunicativa, onde outros modos de conhecimento se dão .
Não basta o conhecimento objetivo de uma determinada situação, seja lá o que isso signifique, para que os que se colocam a tarefa de produzir esse conhecimento tenham competência para formular a solução. O modo como cada um dos que estão implicados percebe a situação é diferente, assim como, a própria história vivenciada pelos protagonistas diretos implica que nem todos os envolvidos sejam igualmente acreditados. Assim, por exemplo, uma liderança comunitária implica um modo de conhecimento inscrito na relação entre os membros daquele lugar, daquele espaço. Geralmente ele sabe algo fundamental para seus pares, caso contrário, ele não seria acreditado nem, tampouco, seria uma liderança comunitária, sindical, religiosa. Este modo de conhecimento implicado nas próprias relações de uma determinada comunidade deve ser considerado como parte da realidade objetiva e, como tal, muito provavelmente contribuirá para fazer com que, no mínimo, a mediação entre o conhecimento técnico-perito e a efetiva solução dos problemas seja acreditada pelos diretamente implicados. Trata-se de um capital político-cultural objetivado nas relações da comunidade implicada
A liderança de um pastor, ou de um sindicalista, o prestígio de um velho pescador, ou de um pajé, ou da(o) mais velha(o) para as comunidades tradicionais implica conhecimentos outros, uma verdadeira ‘comunidade estendida de peritos’ (extended peer community) como chamam Funtowicz e de Marchi . Independentemente dos títulos ‘oficiais’ que esses ‘diferentes peritos’ tenham, com certeza, ampliam não só a qualidade do conhecimento a respeito do ambiente em que vivem como, também, podem emprestar uma qualidade fundamental – a qualidade de eficácia - às medidas que, eventualmente, venham a ser indicadas, porque colocam novas mediações na relação entre o perito convencional e o mundo vivido pelos diretamente implicados (Funtowicz e de Marchi). Afinal, as relações sociais e de poder são instituídas por sujeitos cognoscentes, enfim, por homens e mulheres que conhecem porque o conhecimento está inscrito na vida e que esse conhecimento não necessariamente é escrito ou mesmo falado (de Certeau e Gonçalves, 2002 ).
Mais uma vez, e de outra forma, estamos vendo como o conhecimento está implica a sociedade como um todo, com suas relações sociais e de poder. Não nos enganemos: quaisquer que sejam as razões que levam à crise do conhecimento disciplinarizado instituído (por um processo desencadeado por sujeitos instituintes), essa crise no plano do conhecimento está indicando uma crise profunda das próprias relações sociais e de poder. Assim, devemos admitir, já como ponto de partida, que uma perspectiva interdisciplinar, embora necessária, não pode ser vista como um remédio para todos os males, uma Panacéia, como se pudéssemos instituir uma nova estrutura de pensamento dissociada das relações sociais e de poder, uma cabeça sem corpo.
Estamos, pois, muito adiante de uma mera perspectiva interdisciplinar ou multidisciplinar, mas, sim, diante de algo que envolve outras relações sociais e de poder e que, como tal, exige um outro conhecimento implicando, inclusive, outros protagonistas, outros saberes. É de uma outra racionalidade que carecemos, com o cuidado de que ela não se imponha de fora por meio de algum saber (que se quer) competente e que reproduza a separação entre homens de pensamento e homens de ação, como bem assinalara Hanna Arendt . Os caminhos da racionalidade ambiental apontados por Enrique Leff , a ciência posnormal de Walter Pengue e Silvio Funtowwicz, e a hermenêutica diatópica de Boaventura de Sousa Santos são boas pistas para esse encontro.
II PARTE
Aquecimento Global e Transição Energética - 1
Carlos Walter Porto-Gonçalves
Desde que a revolução (nas relações sociais e de poder) industrial inaugurou, no século XVIII, uma nova etapa na relação da sociedade com a natureza, através do uso de combustíveis fósseis, que passamos a lançar na atmosfera gases que alteram a retenção do calor nessa camada que nos envolve, o chamado efeito estufa. Não nos deve escapar que o êxito da máquina a vapor proporcionando o aumento da capacidade de transformação da matéria, em física chama-se a isso de trabalho, veio ao encontro de um mito civilizatório – o de dominar a natureza – que encontrava numa burguesia ávida de fazer seus lucros na escala de tempo no horizonte de uma vida (e da avidez) imediata um protagonista que, como dissera um dos seus críticos, Karl Marx, cumpriria uma missão civilizatória. O mito de dominar a natureza fez com que víssemos mais a máquina do que o vapor. Ou melhor, ainda que alguns tenham visto que a máquina não só produz outputs socialmente condicionados para usufruto humano, mas também produz efeitos não desejados, como o calor e a desagregação da matéria sob a forma de lixos vários (líquidos, gasosos e sólidos) com tempos desiguais de assimilação na própria natureza (alguns até mesmo com centenas a milhares de anos como os radiativos), o fato é que a invenção do termostato nos fez crer que o calor dissipado por uma máquina poderia ser controlado fazendo com que a máquina continuasse a produzir indefinidamente. Ocorre que se um aparelho de ar-condicionado pode ser controlado por um termostato e se manter funcionando com esse autocontrole, isso não impede que ele continue emitindo calor para fora do ambiente que está sendo refrigerado, aquecendo-o. Enfim, a dissipação do calor inerente ao processo de trabalho, ou seja, ao processo de transformação da matéria é uma lei inexorável, segundo nos informam os físicos (lei de entropia). Enfim, falar de processo de trabalho é falar de energia que é exatamente a capacidade de realizar trabalho. Ocorre que as leis da termodinâmica foram levadas ao paroxismo por uma sociedade que se viu cega, tal como Rei Midas que confundira a riqueza com sua expressão em ouro ou dinheiro. Afinal, o dinheiro não é riqueza, mas sim uma das formas possíveis dela se expressar. Todavia, quando expressamos a riqueza em termos quantitativos, como no caso do dinheiro, isso implica uma idéia de que a riqueza não tem limites, posto que sempre podemos imaginar um número e a ele acrescentarmos mais um. Tudo isso seria válido se a produção de riqueza se fizesse no mundo da abstração matemática, onde a economia quis ancorar sua pretensão de cientificidade, e não no mundo mundano onde vivemos (e morremos, é sempre bom lembrar, pois nos indica que há limites para a vida de cada um de nós, muito embora Lorde Keynnes nos dissesse que não devíamos nos preocupar tanto com o futuro, pois “no futuro estaremos todos mortos”, como afirmara).
O aquecimento global é a expressão material do efeito não desejado do êxito do produtivismo que comanda a sociedade industrial, sobretudo quando submetida aos ditames das classes capitalistas, sejam as burguesias hegemônicas no capitalismo monopolista de estado (Estados Unidos à cabeça), sejam os gestores hegemônicos no capitalismo de estado monopolista (China e antiga URSS, por exemplo).
Diante das graves implicações desse modelo civilizatório fundado no mito da dominação da natureza – aquecimento global já nos umbrais 350 ppm; capacidade de produção de biomassa anual do planeta ultrapassada em 30%; produtividade planetária global embora aumentada nos últimos 40 anos em 30% convivendo com o consumo produtivo de matérias primas com um aumento de 50% no mesmo período, o que indica que continuamos num mundo de alto consumo material em plena era virtual – tudo indica que nos vemos diante da necessidade de uma transição energética rumo à energias renováveis, onde o Sol volta ao centro das preocupações.
Já indicamos no início desse breve artigo que já no século XVIII, com o uso da máquina a vapor com combustíveis fósseis, o que se fez foi substituir a energia de ontem, ou seja, a fotossíntese dos ciclos dos dias e das noites, dos ciclos anuais e da reprodução biológica das espécies e dos ecossistemas e biomas em décadas, séculos e, até mesmo, milênios. Excluí aqui, conscientemente, os ciclos dos milhões de anos, ou seja, os ciclos geológico-geomorfológicos das mineralizações que conformaram os combustíveis fósseis com a fotossíntese de “ontem”. Assim, o que a revolução (nas relações sociais e de poder) industrial fez foi se apropriar de uma capacidade de transformação da matéria que estava concentrada nas moléculas de carbono que, entretanto, era materialmente fruto do trabalho da natureza e também da descoberta científica dessa potencialidade. Cuidemo-nos aqui, mais uma vez, e evitemos os males do antropocentrismo que dá todo destaque à descoberta científica do potencial de transformação da matéria inscrito no carvão e no petróleo e se esquece que o fato de sabermos, por meio da ciência, que os combustíveis fósseis têm potencial de transformação da matéria não faz com que a existência desses materiais seja fruto dessa descoberta científica. Nenhum cientista, assim como nenhuma sociedade, produz petróleo ou carvão, ou água, ou ferro, ou cobre, ou manganês ou qualquer outro minério. A natureza é quem os produz e é essa dimensão que vem sendo negada por um paradigma científico que emana do mito da dominação da natureza e seu antropocentrismo. E mais, dominar alguém ou alguma coisa é fazer com que o que vai ser objeto dessa dominação não seja considerada na sua dimensão de um outro ser enquanto tal, mas fazer com que o ser dominado seja submetido à vontade de outrem e, deste modo, é negado na sua outridade. E assim, o êxito da sociedade industrial submetida aos ditames das classes capitalistas burguesas e de gestores, leva-nos aos limites com que hoje nos defrontamos. O efeito estufa é o efeito desse olvido, é o efeito do êxito de um processo civilizatório que quis dominar a natureza. Trata-se, hoje, de dominar o dominador e libertar a natureza e a sociedade dessa lógica burguesa-gestorial de acumulação e crescimento ilimitados.
Diante disso várias iniciativas estão erraticamente em curso em busca de algo que nos conduza nessa necessária transição energética. Esclareça-se que a expressão erraticamente usada acima não é fortuita. Trata-se, na verdade, de uma luta encarniçada entre gigantes por se antecipar para ter o controle de uma nova matriz energética que, na atual correlação de forças políticas sob hegemonia dos grandes complexos de poder técnico-científico-industrial-financeiro-militar-midiático tende a buscar uma matriz universalizante que, exatamente por esse caráter universal, possa ser controlada oligopolisticamente. Nessa luta são invocados argumentos verdes por muitos dos que até aqui os negavam, e não necessariamente porque deles tenham se convencido, até os que invocam abertamente o uso da energia nuclear cuja negação era, até aqui, cláusula pétrea dos ecologistas, “Hiroshima Nunca Mais”, lembram? O complexo de poder técnico-científico-industrial-financeiro-militar-midiático ligado ao mundo do petróleo, por exemplo, vem se aliando ao mundo do biocombustível, como se pode ver na constituição, em 2006, da Associação Interamericana de Etanol cujos dois presidentes eram, simplesmente, o Sr. Jeb Bush, ex-governador da Flórida, e o Sr. Roberto Rodrigues, ex-Ministro da Agricultura no governo Lula da Silva e ex-diretor da ABAG – Associação Brasileira de Agribusiness . Enquanto isso, no Brasil exalta-se o pioneirismo de nossa produção de energia de biomassa, sobretudo o etanol e o biodiesel, e ao mesmo tempo a redenção do país que viria do mundo do petróleo com o pré-sal! Ao mesmo tempo em que o Brasil se esforça para promover a integração da América do Sul, o Sr. Jeb Bush, parceiro do agribusiness brasileiro na Associação Interamericana de Etanol, declara que essa iniciativa significa que se está indo “da ALCA ao Álcool”!
Enfim, num sistema mundo hegemonizado pelo capital, onde capitalistas e gestores comandam os destinos do mundo, o controle da energia se torna estratégico. Afinal, a energia é a matéria que permite transformar matéria. Todavia, o controle das fontes de energia, inclui também o controle do sistema técnico ao qual a energia deve servir e, assim, portanto, é com todo o sistema técnico que devemos estar preocupados. E, sobre isso, não se tem mais que alguns sinais e, a julgar pelos grandes players que hoje podem jogar esse jogo, o sigilo e não a cooperação é que vai comandar essa evolução. Toda a questão passa a ser: pode o aquecimento global esperar até que um complexo de poder determinado imponha sua hegemonia com seu sistema técnico e sua matriz energética (novo ciclo de Kondratief?) ou se a humanidade conseguirá reunir forças políticas que sejam capazes de apontar outros caminhos que não seja o dos burgueses e gestores que sustentam o capitalismo, seja o capitalismo monopolista de estado (hegemonia dos monopólios privados a partir dos EEUU), seja o capitalismo de estado monopolista (hegemonia dos gestores comunistas da China)?
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